Santa Semana!
©Jane Bichmacher de Glasman*
Nada é por acaso
Este ano (2019), de 19 a 22 de abril são comemoradas a Páscoa
Judaica e a Cristã. Não é mera coincidência. Durante muito tempo, no início do
Cristianismo, as festas bíblicas eram comemoradas na mesma data, segundo o
calendário judaico que é lunissolar. A posterior distinção de calendários não
impede que as datas das comemorações voltem a coincidir. A maioria das pessoas
sabe que Pessach é a Páscoa Judaica, embora, na verdade, a Páscoa seja o
Pessach Cristão.
Liberdade e Libertação
O nome Pessach deriva do hebraico passach que significa
saltar, passar por cima; comemora a libertação dos judeus do cativeiro no Egito
e é a celebração da liberdade, a história da mobilização do povo para a conquista
da liberdade.
Para o povo judeu, recordar a saída da escravidão significa ultrapassar
os limites que impedem a realização de seu pleno potencial. Em hebraico, Egito
é Mitzraim, que significa estreitezas, limites, angústias, aflições. O
“Egito” de uma pessoa pode ser seu egoísmo, desejos primitivos, vícios. Pessach
é uma oportunidade de transcender as limitações e realizar o infinito potencial
espiritual em cada aspecto da vida, ultrapassando as aflições que estreitam
nossos caminhos.
A comemoração de Pessach não foi sempre a mesma. Mudou com o
passar dos tempos, mas seu cerne é a liberdade. Originalmente, as comemorações
de Pessach eram uma espécie de celebração da primavera, uma festa agrícola, à
qual se juntaram as comemorações do Êxodo. “Observa o mês da primavera e guarde
o Pessach do Senhor teu Deus, pois no mês da primavera o Senhor teu Deus te
tirou do Egito à noite” (Deuteronômio 16:1)
A festa de Pessach dura oito dias. Os dois primeiros e os dois são festas
solenes; os intermediários são semifestas. Desde o século I, após a expulsão
dos judeus da sua terra, a comemoração de Pessach passou a ser decisiva
para que o povo não desaparecesse e continuasse a cultivar a tradição de Pessach como luta pela liberdade (o que
justifica, por toda a sua carga simbólica, ter sido mantida pelos criptojudeus
através dos séculos, por exemplo).
Seder e Ceia
Em geral, associamos Pessach a uma ceia, assim se referindo ao Seder. Porém Seder significa ordem, em hebraico, relacionando-se à ritualística
da noite, que compreende 14 itens a serem seguidos numa ordem específica,
dentre os quais, o 10º corresponde à refeição propriamente dita. Embora o Seder
de Pessach gire em torno de alimentos, eles têm um caráter mais simbólico
que comestível. A principal bandeja que se coloca à mesa, a Keará, não é
para ser consumida - sua função é pedagógica. Quando Rabi Gamaliel instituiu o Seder,
ele estava preocupado em manter viva a esperança do povo, lembrando que isto
foi feito no período da dominação romana.
O Seder é uma representação de um relato histórico, ao vivo, com
um narrador, em geral o pai da família, o que se repete todos os anos em cada
lar judeu, nas duas primeiras noites. E na vida moderna urbana, quando os
horários e ocupações não combinam, o Seder representa um novo papel.
Pelo menos durante uma semana de reunião, a família repensa grandes temas pelos
quais vale a pena lutar, como liberdade e esperança.
Na primeira noite do Seder, há
sempre alguns convidados. É dever convidar aqueles que estão tristes, sós, sem
família, para que possam celebrar junto a Festa da Liberdade.
Seder e Eucaristia
A última Ceia de Jesus foi a celebração de um Seder de Pessach. No
Catolicismo, dela são mantidos elementos em comum até hoje, desde objetos
ritualísticos, com outros significados simbólicos e religiosos, presentes em
toda missa. O pão, a hóstia, é a matzá também parte do ofertório. O
cálice de vinho, sendo apenas um, vem dos quatro copos tomados durante o Seder e, no judaísmo, o cálice do Kidush
(santificação).
Desacertos da História
Lembremos que no terceiro copo de vinho, abrem-se as portas para entrar o
profeta Elias, que segundo a tradição visita as casas judias na noite do Seder e que anunciará a vinda do
Messias.
Deve-se deixar a porta entreaberta para facilitar a entrada do profeta
Elias, mas sendo ele tão poderoso a porta fechada seria um problema? O costume
tem também outra origem:
Infelizmente,
eventos associados a Pessach, foram responsáveis pela morte de milhares de
judeus. Marranos ou criptojudeus (cristãos novos, convertidos à força, que
mantinham seu judaísmo em segredo) eram particularmente vigiados e presos em Pessach pela Inquisição, como hereges. A
acusação de "assassinato ritual" levou ao massacre e expulsão de
diversas comunidades européias: os judeus eram acusados de matarem criancinhas
cristãs para fazer matzá com seu
sangue (?!)- um absurdo para quem tenha alguma noção de Kashrut, leis dietéticas e de pureza judaicas, que proíbem
terminantemente ingestão de sangue.
A porta ficava aberta porque as
famílias judias queriam que os vizinhos cristãos pudessem ver a qualquer
momento o que os judeus estavam fazendo. Essa calúnia passou à história com o
nome de “assassínio ritual” ou libelo de sangue. Mas nem sempre se podia deixar
a porta aberta, como nos tempos da Inquisição, quando o Pessach era celebrado
na clandestinidade.
Sem falar na
acusação milenar de "judeus deicidas", assassinos de Jesus, e a
malhação de Judas, prática tão conhecida no Brasil... Ou a super faxina anual
de Pessach, que aliada a outras
práticas judaicas de caráter higiênico (como banhos, trocas de roupas, cuidados
com os mortos, doentes, etc.) pouparam judeus de morrer tanto quanto os demais,
em epidemias como a Peste Negra- e que por isso, foram acusados de causá-las,
determinando sua perseguição e massacre...
Embora nas
últimas décadas a Igreja Católica venha se empenhando em reconhecer erros do
passado e pedir perdão por eles, determinados preconceitos são muito difíceis
de serem desarraigados da cultura popular. Em português, eles determinaram
conotações vocabulares negativas e pejorativas, como judiar, judiaria,
judiação, e a associação de judeu a usurário no anedotário. Como fato
histórico, os judeus, originalmente pastores, agricultores, artesãos e
profissionais liberais, foram forçados a se dedicar ao comércio devido a
restrições a eles impostas na Idade Média, como possuir terras, etc..
Páscoa com Z
Pessach, Paschah ou Páscoa, o essencial é que nós, da raça humana, aprendamos a nos
libertar de nossos preconceitos, através do esclarecimento e da prática da
tolerância e não discriminação. E que possamos caminhar, assim, para uma
verdadeira PAZcoa, PAZcomAmor!
Publicado em Revista Shalom, Especial de Pessach 5771, abril de 2011, e
em Jornal Alef, Ano 14 | Edição 1.425 | 28 de março de 2010 | Domingo
Caso queira
publicar, o todo ou parte, ou se tiver dúvidas, quiser maiores esclarecimentos,
identificar fontes ou legendas de imagens, por favor, escreva-me!
*Doutora
em Língua Hebraica, Literaturas e Cultura Judaica, Professora Associada, fundou
e coordenou o Setor de Hebraico da UERJ e da UFRJ, o Programa de Estudos
Judaicos da UERJ, escritora.
"A lição central de Pêssach é muito simples: encoraje seus filhos a perguntar e lhes ensine a história da liberdade, se você quiser que eles nunca a esqueçam."
Rabino Lord Jonathan Sacks
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